Custou-me vê-la assim, tão desamparada, encolhida, chorando abandonada. Mas permitir que isso sucedesse, era a única maneira de ser coerente com o Amor que sentia por ela. Tinha que aprender. Descobrir que a dor que se inflige aos outros volta a nós, inevitavelmente, e por vezes quando menos se espera. Descobrir que por maior que sejam as mágoas, a revolta que se carrega, mesmo que isso pareça cegar e tolher toda a vontade de confiar e acreditar, não devemos jamais descarregar em quem nos estende a mão. No entanto, não deixas em momento algum de ser a criatura mais linda que o meu Universo já viu… Sentia que só podia estar ali e observá-la, que isso era o mais correcto. Um dia saberás da tua Condição, da Natureza da tua Alma, mas só tu poderás descobrir, ninguém o fará por ti, até lá, estarei aqui sempre que for preciso… Não me atrevi sequer a tocá-la, algo que tantas vezes fizera neste estado intermédio, desacoplado do corpo. Quantas vezes a abracei em momentos de angústia no escuro, como aquele, sem que ela fizesse a mínima ideia de que era acolhida por um Espírito Angelical que ali estava e lhe era Amoroso. Esse calor retemperante que já tens sentido, que já te tem salvo, sim, sou Eu… Prostrada ao choro, adormeceu de exaustão. Amo-Te para além dos limites do corpo, minha Querida…
Pestanejei, pisquei, tremeluzi, e saí do seu quarto cujo tecto tinha pintado um céu estrelado. Dei comigo no meio de uma rua movimentada da Cidade. Desfrutando da maravilha de não ter um corpo, deixei-me vaguear ao sabor das interacções. Olá!... Uma criança viu-me e riu descontroladamente de ingénua alegria, sem que os pais percebessem porquê. É agora, do Beijo de Olhares aos Lábios que Beijam… Um casal apaixonado sentiu o alento da minha presença e num uno arrepio se enlearam ainda mais. Força, companheiro, vai em frente!... Soprei ao ouvido de um homem maduro e no momento decidiu-se finalmente a largar tudo e partir, estugando a passada temente mas aliviado. Pestanejei, pisquei, tremeluzi, e saí do meio daquele lago de gente. Rumo à Paz Quintessencial… Dei comigo no Jardim dos Sete Suspiros. A cúpula de árvores. As corujas. Deste lado o seu canto é ainda mais belo. E elas vêm-nos. A mim e a todos os Corpos Luminosos que aqui se reúnem para o Concílio de Amor. Paulatinamente, sobe e desce, fiquei pairando sobre o relvado, misturando-me com o seu cheiro que deste Lado é tão encantadoramente diferente, sobrepujando a delícia e o frescor. Flutuei, nesta forma de puro Amor. Flutuei, flutuei, e flutuei… Durante toda a noite, flutuei na cadência da maré dessa Dança Angelical…
Pestanejei, pisquei, tremeluzi, e voltei ao quarto, ao corpo, caindo no adormecimento da matéria. Sonhos Serenos, Sonhos Plenos…
Hummm!?!??... Qualquer coisa cutucando a minha face, puxando-me os cabelos com gentileza. O quê?... A gata a rondar-me a cabeça entre miares e ronronados. Já sei, já sei, queres que me levante… A persiana atipicamente entreaberta devassa o quarto à luz matinal que já o inunda quase por completo. Sem qualquer tipo de recordação de sonhos ou imagens, acordo com aquela sensação de que terei andado de um lado para o outro durante toda a noite. Pés no chão. Triunfal, a gata sai disparada para a cozinha. Bom dia para ti também... Desperto o rosto e a nuca com água fria. Inspiro e expiro profundamente. Sento-me em meio Lotus e começo o dia com meditação. Eu Sou…
“She taught me to play the piano, and what it meant to miss somebody.”
Eric Roth, The Curious Case of Benjamin Button screenplay
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