quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

Corpo Luminoso (Do Outro Lado, Quando Sou)

Custou-me vê-la assim, tão desamparada, encolhida, chorando abandonada. Mas permitir que isso sucedesse, era a única maneira de ser coerente com o Amor que sentia por ela. Tinha que aprender. Descobrir que a dor que se inflige aos outros volta a nós, inevitavelmente, e por vezes quando menos se espera. Descobrir que por maior que sejam as mágoas, a revolta que se carrega, mesmo que isso pareça cegar e tolher toda a vontade de confiar e acreditar, não devemos jamais descarregar em quem nos estende a mão. No entanto, não deixas em momento algum de ser a criatura mais linda que o meu Universo já viu… Sentia que só podia estar ali e observá-la, que isso era o mais correcto. Um dia saberás da tua Condição, da Natureza da tua Alma, mas só tu poderás descobrir, ninguém o fará por ti, até lá, estarei aqui sempre que for preciso… Não me atrevi sequer a tocá-la, algo que tantas vezes fizera neste estado intermédio, desacoplado do corpo. Quantas vezes a abracei em momentos de angústia no escuro, como aquele, sem que ela fizesse a mínima ideia de que era acolhida por um Espírito Angelical que ali estava e lhe era Amoroso. Esse calor retemperante que já tens sentido, que já te tem salvo, sim, sou Eu… Prostrada ao choro, adormeceu de exaustão. Amo-Te para além dos limites do corpo, minha Querida…

Pestanejei, pisquei, tremeluzi, e saí do seu quarto cujo tecto tinha pintado um céu estrelado. Dei comigo no meio de uma rua movimentada da Cidade. Desfrutando da maravilha de não ter um corpo, deixei-me vaguear ao sabor das interacções. Olá!... Uma criança viu-me e riu descontroladamente de ingénua alegria, sem que os pais percebessem porquê. É agora, do Beijo de Olhares aos Lábios que Beijam… Um casal apaixonado sentiu o alento da minha presença e num uno arrepio se enlearam ainda mais. Força, companheiro, vai em frente!... Soprei ao ouvido de um homem maduro e no momento decidiu-se finalmente a largar tudo e partir, estugando a passada temente mas aliviado. Pestanejei, pisquei, tremeluzi, e saí do meio daquele lago de gente. Rumo à Paz Quintessencial… Dei comigo no Jardim dos Sete Suspiros. A cúpula de árvores. As corujas. Deste lado o seu canto é ainda mais belo. E elas vêm-nos. A mim e a todos os Corpos Luminosos que aqui se reúnem para o Concílio de Amor. Paulatinamente, sobe e desce, fiquei pairando sobre o relvado, misturando-me com o seu cheiro que deste Lado é tão encantadoramente diferente, sobrepujando a delícia e o frescor. Flutuei, nesta forma de puro Amor. Flutuei, flutuei, e flutuei… Durante toda a noite, flutuei na cadência da maré dessa Dança Angelical…

Pestanejei, pisquei, tremeluzi, e voltei ao quarto, ao corpo, caindo no adormecimento da matéria. Sonhos Serenos, Sonhos Plenos…

Hummm!?!??... Qualquer coisa cutucando a minha face, puxando-me os cabelos com gentileza. O quê?... A gata a rondar-me a cabeça entre miares e ronronados. Já sei, já sei, queres que me levante… A persiana atipicamente entreaberta devassa o quarto à luz matinal que já o inunda quase por completo. Sem qualquer tipo de recordação de sonhos ou imagens, acordo com aquela sensação de que terei andado de um lado para o outro durante toda a noite. Pés no chão. Triunfal, a gata sai disparada para a cozinha. Bom dia para ti também... Desperto o rosto e a nuca com água fria. Inspiro e expiro profundamente. Sento-me em meio Lotus e começo o dia com meditação. Eu Sou…





“She taught me to play the piano, and what it meant to miss somebody.”

Eric Roth, The Curious Case of Benjamin Button screenplay

quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

Quem me salve (Tu?)

É verdade… Eu, o Super-Herói, preciso de alguém que me salve. Do quê? Do Mundo de Mim. Por isso venha quem me salve. Tu? Talvez…

Mas para isso tens que Entrar. Queres? Serás capaz?…

Distante do lar a que me habituei, privado do meu idioma natural por um esquecimento que me foi induzido, aqui numa Terra onde pouco ou nada se entende. Porquê? Porque quase ninguém atinge que a solução está numa cambraia tecida de Toque e Silêncio Elaborado.

Procurei a linguagem da ausência de palavras em ti e encontrei um reflexo do teu rosto estampado sobre uma paisagem em movimento. Formidável. Conheço-te. Já fomos um do outro, mas não sou de dar importância a coisas passadas. Agora somos, tão-somente. No entanto, sei que não há frio que possa resistir ao temperamento das linhas que abainham tuas feições.

Não é que se possa dizer que te Amo à distância, porque se o Universo é um Oceano só, então eu sou parte de ti. Qual? Essa mesma, que se torna melífera, que se propaga por todo o teu corpo quando estremeces até perder a noção de Ser.

Anda vem. E sê o final feliz do início da mais insondável das estórias, a Nossa.

Porque… Eu, o Super-Herói, preciso de alguém que me salve.


quarta-feira, 7 de dezembro de 2011

Vulnerabilidade (Sinal de Morte)

Toma, estou aqui! Faz de mim o que quiseres. Mas tem cuidado, porque aquilo que fizeres comigo é o que fazes com a parte de ti que é um espelho de mim. Não tenhas receio, sabes que te Amo. E se isso é assim, então há pelo menos uma parte de Ti que se Ama. Não é bom? Claro que sim, claro que é.

Perguntas-me, qual será o meu Sinal de Morte? Todos temos um. Há quem tenha escolhido uma Borboleta. Também já houve quem elegesse um Beija-Flor. Mas na verdade, e lirismos à parte, o Sinal é sempre algo de profundamente Íntimo, que muitas vezes escapa até ao próprio detentor ou detentora da senha. Mantém a vigilância. O Sinal da Morte é o mais importante detalhe, identificá-lo significa a possibilidade de saber morrer, renascer, viver e voltar a morrer ou de simplesmente Acordar, se for esse o Anseio.

Junta-se a Vida e a Morte, e têm-se um Orgasmo.





“Your life is defined by its opportunities... even the ones you miss.”

Eric Roth, The Curious Case of Benjamin Button screenplay

segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

Esta noite vou Morrer (Obrigado)

Pronto…

Que boa noite esta para se morrer, fria e longa. Não tenho medo, sinto-me bem. Podia ter feito melhor, é verdade, mas fiz o que pude. Já chorei o que tinha a chorar, também ri o que havia para rir. Agora é viver até à última gota esta experiência que se aproxima do seu apogeu. É claro que já a tinha pressentido, a pessoa sabe sempre, mas agora estou a vivê-la, e isso muda o cenário por completo. Que a morte se viria a revelar a experiência máxima de Vida era mais do que previsível… Acima de tudo, sinto uma tremenda Aceitação, depois, um grande desejo de partir, Felicidade. É importante que se perceba, não se trata de uma vontade de fugir ou uma ânsia mórbida de morrer. Não. É um desejo de respeitar a Vida e partir desta casa que deixou de poder suportar os ensejos da Alma, e rumar a novas paragens, ver novas paisagens. Já nem o corpo dói, porque já não o sinto. Peguei-o de empréstimo e nem sempre o desfrutei, mas tive muito respeito e quase sempre gratidão. Concedeu-me a possibilidade de me expressar. “Toma, estou aqui, faz comigo o que quiseres, porque sou um plasmado de Ti”. E o que de mais elevado fiz foi tão-somente isso, Criar e Expressar… -Me…

Que Alívio.

Por Tudo perdoo a Todos, Tudo Perdoo a Mim. Nada fica por fazer nem por dizer. Está tudo bem. Sei que pode parecer estranho, palavras de ocasião ou simplesmente a graça de um privilégio raro, mas tem apenas a ver com Estado Interior. Os outros existem, livres e independentes, mas enquanto não compreendemos o Essencial parecem aquilo que nós achamos que eles são. E neste momento consegui essa proeza de ver a Gente tal como Ela é, nem mais, nem menos. Se o Universo Eu Sou, então tudo o que vi era Eu. Ao Aceitar-me na vida que fui, tudo Aceitei. É por isso que volto a dizer… Não há mal algum, está tudo bem. Calma e Paz.

E os olhos já se me mudaram de cor. Já são só um Brilho naquela intensa tonalidade em forma de Flor…

Sei que escolhi a melhor noite para Passar. E não me vou esquecer da dica que me foi dada… “Quando conseguires parar o fluxo e o refluxo do Mar, chegaste”.

Últimas palavras?... É Bom Morrer.





“You can be as mad as a mad dog at the way things went, you can curse the fates, but when it comes to the end, you have to let go.”

Eric Roth, The Curious Case of Benjamin Button screenplay

terça-feira, 1 de novembro de 2011

Calma (Muita Calma)

Noite. Ouço o canto das Corujas. Estamos em Novembro e as folhas ainda mal começaram a cair das árvores. Isso deixa-me desconfiado.

Mas...

Calma. Muita Calma.


(‘Coração Caído, Coração Erguido’, Jehoel)

quinta-feira, 27 de outubro de 2011

Outro de Tantos Capítulos (Eu e Tu, o Essencial)

Outro de Tantos Capítulos, Só mais Um, O Essencial:

O Fogo precisa da Água tanto quanto Essa precisa Dele. Porquê? Para que se transcenda a manifestação ordinária das coisas e Aconteça o Vapor.

E assim discretamente, volto à Alfazema, desta feita incensada.


terça-feira, 25 de outubro de 2011

Sem saberes quem Sou (Estou)

Vi-Te. Deitei-me sobre o manto de relva que se estendia de mim até ti, tudo só para te poder Tocar o Pulsar. E de algum modo pressentiste-me, e gostaste. Porque naqueles momentos te sentiste Especial sem que houvesse razão para tal. Adorada Pulsação.

É assim o teu efeito sobre mim. Não sei o que saber, porque o que sinto não é do domínio do Sentir. Bela quando sorris, linda quando amuas. És o Ponto de Intersecção, Fruto do Amor consumado entre a Guerra e a Paz num intercurso de intensa Paixão. Pois Sabedoria é entender que Homem e Mulher se ardem até à Anulação.

Deixei-te um Bilhete de Amor, escrito com um Sopro no Ar, de seguida ausentei-me. Fui ver vidas passadas e vidas passaram. Só o Presente conta. Estamos Aqui. Eu Sou. Tu És. Nós Somos.

Renovado, mas sem dizer como nem porquê. Preparado. Saí, a pé como sempre, e recebi de peito aberto o debutar anual do cheiro a lareira no sonoite da Vila Encantada pelo seu Coração de Luz Lunar. E para celebrar, de Alfazema uma Infusão. Encho a tua caneca pintada de cores palpitantes e deixo-a ao meu lado para assim que chegares.

Até lá, já lá estamos.


quinta-feira, 29 de setembro de 2011

Da Dança (Ao Desaguar do Néctar em tua Flor)

Onde estive? Isso interessa se agora estou?

E se for bom demais? Isso interessa se o que não conhece começos jamais conhecerá finais?

Em verdade, o que poderá importar, se realmente nada interessa…

Banida a conversa, porque há quem Ame odiando a retórica, veio a Dança.

E foi descobrir que A tínhamos em nós, que velozes nos tornávamos Nela bastando que déssemos as mãos… Como um Círculo que se fecha dando à Luz o Sentido afinal!

Quando sobrelevámos a moção excedida, comoção!, olvidamos a Vida e a Morte. Alcei-te aos meus braços e tu, de pernas trancadas em mim, ainda tentaste a derradeira resistência que até então nada mais havia feito do que afirmar o teu desconcertado desejo de rendição. Inconsequente, faltaram-te as forças que a mim sobraram. Pois aí já o Mundo não o era, ascendido a um impulso onde não há Dia nem Noite, apenas os matizes dos nossos sons rasgados de prazer. E também as roupas foram condenadas à expulsão perpetua, tendo se pulverizado estilhaçadas pelo nosso avanço.

E sobre uma pista incandescente, a Dança continuou. E sobre um palco incendiado, a peça sobrepujou. E quando esperavas uma direcção sabida, também eu me surpreendi a mim mesmo, abdicando ser o rumo conhecido, lançando-me ao desconhecido.

Foi quando, lendo a entrega com que se abria o livro das tuas já desprotegidas ilhargas, avancei pronunciando beijos versados com um propósito insular…

Ultrapassadas tuas pernas com estes lábios que só conhecem Poesia arremessada para ti, deliciei-me em tua Flor. Beijei-te as pétalas carnudas vibrando-as, e de tanto te deliciares, incontida, desaguaste com o Néctar jorrado.




(…) acércate a mí
abrázame a ti por Dios

entrégate a mis brazos. (…)


(Pasion, Rodrigo Leão & Lula Pena)

quinta-feira, 1 de setembro de 2011

“Penélope” (A Ascensão da Gata que Morreu por Amor)

Clave do Sol…

[Assim que o salão ficava vazio, só nós e a acústica angelical, sentava-te ao meu colo. Pegava nos teus dedos, tu sorrias fingindo um embaraço que sentias, e fazia-os acariciar as teclas de marfim de um lado. Do outro, minha mão solta sobre o que restava de notas e sustenidos liberando a novela de sons solventes ao dorso da qual nos elevávamos…]

Serena, há algum tempo venho sentido, floriu, chegou a hora, vou contar-te a tua estória.

[A pouco e pouco, tu seguias tocando o piano.]

E se tivesses amado tanto que sentisses não conseguir ir mais além? Sem mais Terra, Céu ou Mar para desvendar, o que restaria? Por embaço ou angústia, poderias pensar, “nada, nada mais poderá restar”… Foi assim que ficaste, límbica…

[Lentamente, como o Céu que se põe antes do laborioso pranto do prazer, eu chovia com a melodia.]

Morreste de tristeza, exaurida, silenciosamente foste finando a tua Luz até apagar… Porque te negaram o Sopro Vital da Alma, ser Amada. Pelo ciúme e perfídia dos outros, tu e o teu Amor foram separados em vida. E por ignorarem a morte que sobreveio, estiveram desde então lado a lado. Ambos o sabiam, mas nenhum o aceitava, porque nunca o quiseram ver. Ligados pelas costas, deixaram-se andar, espectrais, vida após vida, ignorando as sucessivas mortes, cada um no colo da melancolia do outro.

[Aspergia teu corpo com o meu e logo despontavam flores em ti. Flores que colhia e desflorava, pétala a pétala. Ah! Primavera...]

Fantasmas do Amor. O tempo todo em que pareceu que estiveram amarrados foi mesmo tempo. E foi por isso que ele te dizia quando falava sozinho: “Parece que tens andado sempre aqui e eu aí”. E foi por isso que te parecia ouvir um sussurro familiar atrás de ti…

[Roupas jogadas ao chão, corpos germinados um no outro, sobre o piano, um imenso jardim no interior de uma caixinha de música onde o par de bailarinos dançavam lentamente rodopiando. Quem eram não pode ser dito, porque o Ser é feito de Som e não de palavras… Que eram sublimes Sonâncias só possíveis ao sentir transcendido, é só o que pode ser testificado…]

“Mas é preciso que continuemos a ser só em Nós?”, perguntou Ele, “Quando podemos ser em Tudo?, respondeste tu. É por isso que digo: “Vai, ascende”. É por isso que prometo: “E assim voará Ele também.”

[Já as luzes da Cidade Luz bruxuleavam sentenciando a brevidade do sonoite e o augúrio do serão, quando disfarçadamente arrumávamos as pautas. As roupas, agora cúmplices, ajeitadas para esconder os vestígios do Amor que ficavam abafados rente ao corpo, sobrepujando-o até ao próximo encontro, que ficava logo selado pelo vinculo entre olhares. Até lá, era aguardar, entre sonhos e suspiros…]

Agora que deixaste que te lavasse os olhos em Água de Rosas e que tive o cuidado de deixá-la escorrer até ao teu Coração… E se te disser que agora são renascidos, que vos sei andarem por aí, na rota um do outro. Tão perto, tão perto de se encontrarem… E se te disser isso?...

[Entretanto, seguiam-se os dias em que o Piano descansava…]

Essa Luz Quente Maternal que sentes, sim, deixa-a envolver-Te… Sim, eu sei, é Maravilhoso. Boa Viagem, Serena, segue Sorrindo…

[Mas o som, escondido no Éter, esse permanecia dançando pela sala.]

Barra dupla.



(Beth Gibbons - L'Annulaire)